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Na última segunda-feira (04/03), a França constitucionalizou o direito ao aborto. A constitucionalização de um direito é uma escolha que representa determinada sociedade e reflete um determinado momento da história. No caso da França, a interrupção voluntária da gravidez não é considerada crime desde 1975, fruto da aprovação da Lei Veil, que suspendeu penalizações legais da prática. Passadas décadas, não houve uma perspectiva de retrocesso na temática (apesar desse direito ter ficado décadas no plano infraconstitucional). Isso quer dizer que existe uma consolidação, naquele país específico, de que a população majoritariamente acredita que a interrupção voluntária da gravidez é um direito.
A movimentação pela constitucionalização do direito ao aborto reflete algumas questões: (i) trata-se de uma pauta relevante para aquela nação, (ii) existe um interesse em protegê-la e garantir sua preservação contra ataques em mudanças infraconstitucionais, que são sempre mais fáceis do que alterar o que está na Constituição, devido ao quórum necessário de votantes e dos significados atribuídos a essa mudança, alçando-a a um patamar mais elevado jurídica e politicamente falando.
A Constituição de um país estabelece o que é fundamental para um Estado-nação, cria as balizas, os princípios e define os direitos fundamentais que devem ser preservados a longo prazo. Além disso, quando um direito consta na Constituição, o Estado se encontra obrigado, por dever, a cumprir todas as políticas públicas necessárias para garantir sua execução.
No caso brasileiro, posso falar com um pouco mais de propriedade, pois trabalho há cerca de cinco anos com direito constitucional, nossa compreensão jurídica, política e social sobre a interrupção voluntária da gravidez parte de um ponto bem diferente e de um terreno muito mais espinhoso.
A principal discussão sobre descriminalização do aborto está ocorrendo pela via judicial. O Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) ingressou com a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, de relatoria da Min. Rosa Weber (agora aposentada). Em 2018, a então Ministra Relatora chegou a convocar audiência pública sobre o tema, mas seu voto na questão só foi proferido em setembro de 2023. Para a ministra, a pessoa grávida tem o direito de interromper a gravidez de forma voluntária até o terceiro mês de gestação. Um dos principais problemas no tema seria a falta de consenso sobre o inicio da vida. Em outubro de 2023, o Min. Luís Roberto Barroso (agora presidente da Corte) pediu destaque no julgamento. Desse modo, o julgamento será reiniciado de forma presencial e não há previsão de quando será pautado.
Mas, afinal, o que temos hoje?
Primeiro, como regra, a interrupção voluntária de gravidez (a.k.a aborto), é prática criminalizada no Brasil. Conforme dispostos nos artigos 124 a 126 do Código Penal brasileiro de 1940, provocar o aborto, consentir que outra pessoa provoque ou provocar aborto sem consentimento da pessoa gestante, ou ainda provocar aborto com o consentimento da pessoa gestante, constitui crime sujeito a processo criminal, com pena de detenção ou reclusão. Esses artigos estão sendo analisados na ADPF nº 442, no sentido de se eles estariam ou não de acordo com os preceitos da Constituição brasileira de 1988.
No Brasil, hoje, a interrupção voluntária de gravidez só não será imputável quando não houver outro meio de salvar a pessoa gestante, ou se a gravidez for resultado do crime de estupro. Entretanto, como esses dois casos de exceção se encontram previstos no Código Penal, será necessário apresentar provas, e as pessoas envolvidas serão questionadas e vulnerabilizadas pelo sistema penal.
Há, ainda, uma hipótese de exceção que vem da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. No julgamento da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 54, de relatoria do Min. Marco Aurélio, o Tribunal Pleno (formação para julgamento de uma questão com a presença e voto dos onze ministros que integram a Corte) entendeu que no caso de gravidez de feto anencéfalo é permitido o aborto sem que a interrupção voluntária seja considerada crime.
Ou seja, o STF restringiu a interpretação dos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II, do Código Penal para que estes não se apliquem no caso de feto anencéfalo.
Uma outra coisa importante ficou definida na ocasião do julgamento em questão: que o Brasil é uma república laica e neutra às religiões (existem outros julgados sobre o tema). Entretanto, neste ponto, as coisas começam a ganhar tons diferentes que ultrapassam a esfera jurídica e, portanto, precisam ser analisadas com certa cautela. O Estado brasileiro é laico, uma vez que a Constituição brasileira de 1988 garante expressamente a liberdade religiosa em seu texto, apesar de referenciar em seu preâmbulo “sob a proteção de Deus”. No entanto, isso está restrito justamente ao Estado.
O que quero dizer com isso é que o Estado não pode agir contra nem a favor de uma determinada religião, seja na produção de leis, seja na execução de políticas públicas. Mas como vivemos em uma democracia, os eleitos para os cargos do Executivo e do Legislativo representam a população e, a população brasileira é, numericamente falando, bastante religiosa.
Dessa forma, as leis e as eventuais alterações na constitucionalização de certos direitos acompanharão o entendimento da população sobre determinados assuntos. Por esse motivo, pautas como descriminalização de drogas e do aborto movem as emoções das pessoas com tanto afinco.
Ser progressista ou ser conservador, ter ou não uma religião: essas compreensões sociais de cada um dos indivíduos repercutem diretamente na aprovação ou não de leis. Por isso existe, no Congresso Nacional, a famosa Bancada da Bala, Boi e Bíblia, a tríade do pensamento conversador brasileiro vinculando religião e ideologia à política.
Portanto, quaisquer mudanças, progressistas ou retrógradas, acerca da interrupção voluntária da gravidez no contexto brasileira, perpassam pela representatividade política no Congresso Nacional.
Mas e se o STF, ao julgar a ADPF nº 442, decidir pela descriminalização do aborto? Acho bastante difícil e delicado imaginar isso nesse momento específico que estamos. Por isso, acho que a tendência é que o STF aguarde uma mudança no Congresso Nacional para que o diálogo institucional ocorra sem conflito entre os Poderes. O que posso dizer, com algum grau de segurança, é que se a maioria da população brasileira não for favorável à decisão de discriminalização do aborto, existe, sim, uma chance de que essa decisão provoque um backlash. O efeito backlash na jurisdição constitucional é justamente uma reação política no sentido contrário da decisão tomada pelo Judiciário. Normalmente, esse efeito está atrelado a uma resposta política ainda mais conservadora.
Feitas essas considerações sobre o retrato atual da discussão a nível político e jurídico, fiz um levantamento sobre os dados atuais sobre aborto. Vou dar apenas dois exemplos que serão bastante ilustrativos.
Na Pesquisa Nacional de Aborto (PNA) de 2021, de autoria de Débora Diniz et al., uma em cada sete mulheres, com idade próxima dos 40 anos, já fez pelo menos um aborto no Brasil. Mais da metade (52%) do total de mulheres que já interrompeu a gravidez, tinha cerca de 19 anos de idade ou menos quando fez o primeiro aborto. 46% eram adolescentes entre 16 e 19 anos. Quando o recorte de raça é inserido, mulheres pardas e negras têm 46% mais chances de fazer um aborto o que, proporcionalmente, têm mais chances de morrer e têm mais chances de responder a um processo criminal. Reforçando os dados já alarmantes sobre encarceramento em massa de pessoas negras.
Segundo dados publicados pela Gênero e Número em 2023, como parte da série “Aborto é Cuidado”, em parceria com a revista AzMina e o Portal Catarinas, no Brasil, uma a cada 28 mulheres internadas por falha na tentativa de aborto morre. No caso das mulheres pardas, o risco de morte é mais que o dobro comparativamente a mulheres brancas.
Esses dois levantamentos evidenciam como a política de criminalização da interrupção voluntária de gravidez pode ser cruel para mulheres jovens e adolescentes. E aterrorizador para mulheres negras e pardas.
O inicio da vida sexual é um tabu por excelência e a culpa por engravidar tão cedo leva as jovens a tentarem interromper uma gravidez indesejada não apenas por medo da reação dos pais, mas também pela impossibilidade de ter acompanhamento médico adequado, uma vez que essa prática é considerada um crime.
Todas nós conhecemos alguém que já interrompeu a gravidez, ou que, ainda, sofreu sequelas pela ausência de acompanhamento médico adequado. É uma questão de saúde ou criminal? Se é tão comum, qual é realmente o ponto de manter a prática criminalizada? Controle.
O que exatamente sabíamos sobre a vida aos 16, 17, 18 anos de idade? O que sabemos hoje? Certamente, ganhamos algum conhecimento ao longo do tempo. No entanto, o conhecimento, infelizmente, às vezes só nos coloca de encontro às incongruências do sistema. O nosso papel na sociedade é sempre acompanhado por restrições: autonomia, desejo e, enfim, onde fica o nosso poder de escolha, nosso real empoderamento (desculpe-me, eu não gosto muito dessa palavra), quando não podemos tomar decisões sobre o nosso próprio corpo?
Não podemos e não temos o direito de avaliar se aquela gravidez cabe naquele momento de nossas vidas. Seremos consideradas criminosas e podemos ser presas. É isso o que temos hoje no Brasil em relação à interrupção voluntária da gravidez. E não acho que o horizonte de uma mudança progressista está próximo, pelo contrário.
Os grupos pró-vida (contra aborto), são extremamente organizados e têm uma participação engajada na pauta, tanto com presença e lobby no Congresso quanto nas redes digitais. Eles provocam ataques em massa contra pessoas que se expressam acerca do tema.
O caminho para sequer discutir a temática, ter um espaço seguro para debater o contexto atual, é bastante perigoso e espinhoso. O tema está interditado.
Enquanto esse tema continuar interditado por forças conservadoras que encontram-se em cada fresta das estruturas sociais e institucionais, enquanto não tivermos acesso ao direito de escolha sobre nossos corpos, nunca seremos verdadeiramente livres.
Sou entusiasta do tema e os recortes e pontos que listados nesse conteúdo são sensacionais! Sensação de várias caixinhas desbloqueadas na minha mente.
Parabéns! Sensacional!
que edição <3 didática e cheia de reflexões importantes! vou compartilhar com as amigas