uma partícula sólida suspensa no ar, em um giro de bailarina, pousa sobre os livros.
encontra um cantinho para chamar de seu.
deixando marcas de sua ausência tão presente.
se acumula na superfície de tudo o que é concreto e existe.
se deixa ver na fresta de luz que corre por toda a parede da sala.
um funil da cor amarela brilha a festa da memória sobre tudo aquilo que não vi.
pode ser um grão de areia da praia que voou até aqui.
fez música e dançou sobre os discos.
pode ser
o que queimou e virou fumaça,
o que morreu e não quis partir.
a última lembrança do cometa,
talvez a via láctea esteja aqui.
porque somos
estado de poeira, em estado de poesia.
estado de poeira, também faz poesia.
prompt
pedi ao ChatGPT que também escrevesse uma poesia sobre a poeira, e esse foi o resultado:
Poeira
Num raio de sol que atravessa a janela,
dança no ar uma leve aquarela,
partícula antiga, memória esquecida,
eco de passos, de tempo, de vida.
Poeira que dorme no canto do chão,
calada, fiel, sem pedir permissão,
testemunha dos dias que passam ligeiros,
dos risos, das dores, dos janeiros inteiros.
É cinza do mundo, é pó de saudade,
um sopro que espalha a realidade.
O tempo se mede na fina camada
que cobre os móveis, a alma calada.
Mas há na poeira um brilho discreto,
um jeito de ser passado secreto.
É tudo que foi, é tudo que resta —
silêncio sagrado de uma velha festa.
uma questão sobre o que é autoral
Eu gostei do resultado da poesia criada pela ferramenta ChatGPT. O resultado é esperado e compatível com toda a base de dados que a ferramenta consultou sobre a combinação das palavras poesia e poeira. A base de dados, segundo a própria ferramenta, é ampla:
Mas a minha dúvida é: existe originalidade?
A ferramenta responde expressamente que não usa nenhuma base de dados específica nem copia textos prontos, produz de forma “original” a partir da minha solicitação:
Então, supostamente, a originalidade está presente porque esse texto foi criado a partir do meu comando. Então, esse texto é de minha autoria?
E, neste ponto, vejo uma verdadeira caixa de pandora se abrir.
Outro dia, ouvi a seguinte história: uma professora passou uma atividade individual para os alunos, mas todos responderam de forma idêntica, apenas uma das atividades estava relativamente diferente em comparação com as demais. A professora, então, anulou a atividade e pediu para que todos fizessem uma nova atividade sem o auxílio do ChatGPT, mas o aluno com a atividade relativamente diferente questionou: Professora, se o meu é o único que está diferente dos demais, isso é porque o meu comando foi melhor, então, eu não posso ficar com zero porque fui mais criativo.
Esse exemplo ilustra bem uma das várias questões que envolvem autoria e inteligência artificial. Precisamos falar sobre, apesar da ausência de diretrizes claras sobre o tema. Precisamos construir um rol de princípios básicos no manejo dessas ferramentas. Um novo contrato social.
Para a nossa legislação, o ChatGPT não é autor de nada, como falei na última edição da newsletter. Do meu ponto de vista, que inclui a ética como um princípio, também não posso afirmar que a poesia do ChatGPT é de minha autoria porque dei um determinado comando. Posso? Não seria um pouco demais?
É bem possível que todos aqueles que utilizarem o comando “crie uma poesia sobre poeira” obtenham o mesmo resultado, e todos aqueles que aprimorarem o comando, vão obter resultados ainda melhores. Mas sempre muito parecidos. Existe uma questão central sobre originalidade aqui, além do uso de referências não autorizadas para treinar modelos de inteligência artificial.
Queremos nos tornar autores de resultados criados por inteligência artificial?
O ChatGPT é um Google de combinação de palavras e extração de dados de outras fontes em vídeo, imagem e áudio. Mas, ao invés de fornecer um resultado com os hyperlinks para as páginas com as informação de que preciso, de modo que eu tenha a tarefa de pesquisar, extrair a informação e produzir algo a partir disso, o ChatGPT corta um caminho e já me fornece o produto final.
Pesquisar, filtrar, criar, produzir, editar e refletir somem do mapa. O produto final é bonito, palatável e certinho. Por que não pode ser meu? Porque é um resultado. Não é criação. E direito de autoria demanda criação do espírito.
Mas agora vou complicar um pouquinho mais a discussão.
O meu experimento, apesar de ser totalmente de minha autoria, também recorre à combinações similares. Assim, indago: será que estou fazendo o suficiente para ser original?
Minha experiência pessoal, a minha sala de estar, o sol se pondo enquanto escrevo esse texto, a faxina que fiz ontem no apartamento, e a minha forma de ver a vida e dar ênfase ao que acho bonito são minhas fontes de consulta primárias.
Porém, também fiz algumas buscas no google sobre poeira. Na minha visão, ter feito essas buscas me aproximou do resultado do ChatGPT em algum nível. E esse é o grande dilema sobre o que pode ser considerado original e autoral em um mundo de referências filtradas nos mesmos lugares.
Estamos dependentes, como sempre digo. Com ou sem o ChatGPT, nos acostumamos a uma certa forma de pensar e escrever na internet e isso, do meu ponto de vista, é perigoso. O estilo pessoal, ou melhor, a nossa estilística está dando espaço para o famigerado “texto de inteligência artificial”.
Mas ainda há diferenças.
A minha poesia não está bonita, palatável e certinha. Não é uma grande poesia, mas é a minha poesia. Eu que inventei.
Talvez a resposta seja essa. O lugar da imaginação na nossa construção autoral.
Apesar de todas as zilhares de referências usadas pelo ChatGPT, não escrevemos a mesma coisa. Enquanto escrevia, imaginei muita coisa, e tentei traduzir em palavras. Não sei o que ficou melhor, digam-me vocês se há como comparar, afinal. Creio que não é o caso. Não me importo se a poesia artificial tenha ficado “melhor”.
Escrevi algo que queria. Queria falar que a poeira é poesia.
Comecei com o título, como sempre começo.
Simples assim. E me deixei conduzir por isso.
Ao final, surpresa estou.
Poeira não só poesia, também é reflexão.